Histórias do Mundial: A concertação de jogos que levou à eliminação da Argélia
- Updated: 05/12/2022
Com o Mundial de 2022 no Qatar em disputa, olhamos para os momentos que marcaram o Mundial de futebol e que permanecem até hoje na nossa memória, sejam eles bons ou maus.
Quando olhamos para a última jornada da fase de grupos percebemos que todos os jogos são em simultâneo, tal como tem acontecido nas edições anteriores. Os jogos são em simultâneo para garantir que cada equipa tem um jogo justo, assim como eliminar a possibilidade de duas equipas se coordenarem para eliminar outra deliberadamente.
No entanto, isso nem sempre foi assim. O jogo entra a Alemanha Ocidental e a Áustria em 1982 levou a que a FIFA tivesse de alterar as regras.
Mundial de 1982 em Espanha: As expectativas da Alemanha Ocidental de uma vitória fácil
A Alemanha Ocidental era a seleção favorita para levar o troféu do Mundial de 1982. Além da sua visível qualidade, já tinha sido campeã em 1974 e ganho o Europeu de 1980. Os campeões europeus do momento tinham conseguido chegar ao Mundial em Espanha com um recorde de vitórias e com estrelas como Paul Breitner, Karl-Heinz Rummenigge e Lothar Matthäus. Estes jogadores eram considerados dos melhores do mundo e era visível a confiança e motivação desta seleção.
No entanto, essa confiança tornou-se em arrogância na preparação para o jogo contra a Argélia, que teve lugar no Estádio El Molinón, a 16 de junho. Na conferência de imprensa antes do jogo, a seleção da Alemanha Ocidental gozou com as hipóteses de os Argelinos poderem ganhar e humilharam abertamente os africanos.
Um dos jogadores afirmou “vamos dedicar o nosso sétimo golo às nossas esposas, e o oitavo aos nossos cães”, enquanto o treinador da Alemanha Ocidental, Jupp Derwall, disse que “entrava no primeiro comboio de volta para Munique” caso a sua equipa perdesse.
Estas declarações foram feitas com a confiança total na vitória, pois dado ao historial da Argélia a verdade é que os alemães não tinham razão para duvidar da vitória. A verdade é que até ao Mundial de 1982, apenas quatro nações africanas tinham conseguido chegar ao Mundial e todas com pouco sucesso. O Egito foi a primeira em 1934, Marrocos em 1966, República Democrática do Congo em 1974 quando ainda se chamava Zaire, e por fim a Tunísia em 1978.
15 dos jogadores convocados da seleção argelina jogavam na liga nacional devido a uma lei que os proibia de sair do país antes dos 28 anos e 7 desses jogadores nunca tinham estado presentes numa competição internacional.
Se a Alemanha Ocidental não tivesse desprezado tanto, a equipa da Argélia teria estado mais atenta à prestação que os jogadores da seleção tiveram nos últimos tempos, com vitórias contra a Irlanda, o Real Madrid e até o Benfica. Além disso, estes jogadores usavam uma tática de ataque intensa e estava a dar frutos nos últimos tempos.
A Argélia chega à liderança do Grupo 2
Antes do jogo entre as duas equipas, os jogadores alemães comportavam-se como sendo os melhores do mundo, admirando a sua própria grandeza, mas o jogo acabou por não correr muito bem como esperavam.
O jogo provou que a equipa argelina não estava para brincadeiras e que era bem capaz de fazer frente à Alemanha Ocidental. Chaabane Merzekane, jogador argelino, brilhou neste jogo ao mostrar as suas habilidades e nenhum alemão queria acreditar no que via.
Rabah Madjer deu à seleção da Argélia a vantagem do jogo ao minuto 54 e apesar de Karl-Heinz Rummenigge ter conseguido igualar para os alemães aos 67 minutos, a Argélia voltou a estar à frente pouco depois com um golo de Lakhdar Belloumi. A Argélia manteve a vantagem até ao final do jogo e tornou-se a primeira equipa africana a vencer uma equipa europeia no Mundial de futebol.
O resultado deste jogo ecoou por todo o Mundo e surgiram celebrações um pouco por todo o lado, principalmente na Argélia. Depois da partida, Belloumi, falou da vitória de forma respeitosa e não insultou a Alemanha Ocidental tal como tinha feito à Argélia. O avançado afirmou que “nós respeitamos a equipa alemã e respeitamos o seu país, ficamos encantados por também os termos feito respeitar o nosso.” Foi assim que o jogador se referiu à equipa adversária, sem qualquer comentário negativo ao país ou aos seus jogadores.
Os sentimentos vividos depois do jogo eram de euforia e adrenalina, no entanto, após este jogo houve um pequeno revés ao serem derrotados contra a Áustria por 2-0. Apesar desta derrota, a seleção da Argélia ganhou o jogo contra o Chile a 24 de junho, ficando assim muito perto da qualificação para a fase eliminatória do Mundial de 1982, que coincidiu com os 20 anos da independência da Argélia.
Havia uma grande expectativa em perceber como seria o desempenho da Argélia nos próximos jogos e se conseguia chegar longe no Mundial.
A Vergonha de Gijón
A vitória da Argélia contra o Chile no dia 24 de junho deixou-os numa posição confortável do Grupo 2 atrás do líder (Áustria) e dois pontos à frente da Alemanha Ocidental, que estava na terceira posição.
No entanto, um dia depois, a Alemanha Ocidental jogou contra a Áustria e se a seleção alemã ganhasse por 1-0 ou 2-0 seriam as duas qualificadas, isto à custa da eliminação da Argélia.
Ao minuto 8, Horst Hurbesch marcou e colocou a Alemanha Ocidental na frente e o que aconteceu a seguir provocou uma grande indignação dos adeptos.
Com os destinos das duas equipas já bem definidos, A Alemanha Ocidental e a Áustria continuaram o jogo sem jogar. As equipas alternaram entre si para encenar os passes, mas ficou logo evidente que as duas equipas queimavam tempo e não lhes interessava mudar o resultado do jogo.
No estádio El Molinón, os adeptos gritavam “Fora, fora” em protesto com o que assistiam enquanto outros acenavam das bancadas com notas em sinal de indignação.
Na televisão alemã, o comentador Eberhard Stanjek lamentou esta situação e disse que “o que acontece aqui é vergonhoso e não tem nada a ver com futebol. Pode dizer o que quiser, mas nem todos os fins justificam os meios”. Após isto deixou de falar sobre o jogo que já nem era bem um jogo.
Na Áustria, o comentador Robert Seeger partilhou o mesmo repúdio e aconselhou os telespectadores a desligar a televisão, enquanto o ex-jogador internacional alemão Willi Schulz classificou os seus compatriotas como “gangsters”.
O jogo prosseguiu e quando o árbitro escocês Bob Valentine anunciou o fim do jogo, a Alemanha Ocidental e a Áustria foram classificadas, enquanto a Argélia estava fora do campeonato.
As consequências: a necessidade de mudar as regras da FIFA
Apesar das amplas críticas às suas atuações, tanto a Alemanha Ocidental como a Áustria pareciam estar tranquilas nos dias que se seguiram. Quando os adeptos alemães reuniram-se no hotel da equipa para mostrar o seu desagrado, os jogadores atiraram contra eles bombas de água das suas varandas.
O chefe da delegação austríaca, Hans Tshak, acrescentou lume à fogueira quando pressionado sobre o assunto, dizendo “Naturalmente, o jogo de hoje foi jogado taticamente. Mas se 10.000 filhos do deserto aqui no estádio querem desencadear um escândalo por causa disso, isso só serve para mostrar que têm muito poucas escolas. Alguns sheikhs saem de um oásis, são autorizados a cheirar o ar do Mundial depois de 300 anos e pensam que têm direito a abrir a sua boca”. O treinador alemão Jupp Derwall observou: “Queríamos progredir, não jogar futebol”, enquanto o capitão Lothar Matthäus afirmou: “Nós passamos, isso é tudo o que importa”.
É claro que a Argélia ficou incrédula com esta situação, embora o pedido de repetição do jogo que tinha sido apresentado foi recusado pela FIFA. Os próprios jogadores viram as circunstâncias através de uma perspetiva diferente, no entanto, pelo menos de acordo com Chaabane Merzekane, o qual afirmou: “Nós não estávamos zangados, estávamos tranquilos. Ver duas grandes potências a rebaixarem-se para nos eliminarem foi um tributo à Argélia. Eles progrediram com desonra, nós saímos de cabeça erguida“.
Além do pedido da própria Argélia, mais organizações se seguiram e tentar que o jogo fosse repetido, mas essa ideia sempre foi rejeitada pela FIFA. Em vez disso, a FIFA fez algumas alterações ao regulamento do Mundial de Futebol, em que os últimos jogos em cada grupo a partir da competição seguinte (1986) seriam jogados exatamente em simultâneo, para a situação vivida em 1982 não se repetisse.
O argelino Lakhdar Belloumi sentiu que o resultado foi mais significativo do que o seu desgosto em perder o jogo contra a Alemanha Ocidental. O jogador afirmou que “As nossas ações forçaram a FIFA a fazer essa mudança, e isso foi ainda melhor do que uma vitória”, disse Belloumi, acrescentando que “Isso significou que a Argélia deixou uma marca permanente na história do futebol”.
A Alemanha Ocidental seguiu em frente no Mundial e conseguiu chegar à final, no entanto, acabaram por não conseguir vencer o jogo final contra a Itália. O jogo, que teve lugar no estádio Santiago Bernabéu, levou a Itália à vitória por 3-1 graças aos golos de Paolo Rossi, Marco Tardelli e Alessandro Altobelli, todos na segunda parte do jogo. O facto de terem perdido o Mundial na final foi considerado um castigo divino por planearem um pacto de não agressão em Gijón no jogo contra a Áustria.
No Euro 1984, a Alemanha Ocidental era umas das seleções favoritas para vencer a competição que se realizava em França, no entanto, teve uma prestação muito fraca tendo em conta as expectativas sendo eliminada na primeira fase do Euro. A opinião pública sobre o Derwall ficou prejudicada após a inesperada saída da Alemanha Ocidental do Euro numa fase tão inicial e acabou por ser demitido pouco tempo depois dado os maus resultados da seleção alemã.
Apesar de a Argélia ter sido eliminada, acabou por ficar para sempre na história do Mundial.
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