Jogadores PT

Histórias do Mundial: Johan Cruyff não participa no Mundial de 1978 na Argentina

Histórias do Mundial: Johan Cruyff não participa no Mundial de 1978 na Argentina

Com o Mundial de 2022 no Qatar em disputa, olhamos para os momentos que marcaram o Mundial de futebol e que permanecem até hoje na nossa memória, sejam eles bons ou maus.

1977 foi um ano extraordinário: as pessoas faziam fila para assistir ao novo Star Wars: Uma Nova Esperança, os ABBA dominavam as rádios de todo o mundo, a música Dancing Queen era a rainha das pistas de dança, os primeiros computadores Apple II começaram a chegar às lojas e além disto tudo, no futebol, o holandês Johan Cruyff deslumbrava tudo e todos com o seu talento.

Em 1978, na véspera do Mundial de futebol, Cruyff decidiu não participar na competição futebolística, numa decisão que desencadeou várias décadas de especulação e debate sobre as suas motivações. 

Na altura, foram apontadas várias razões para justificar esta saída repentina de Cruyff: a relutância em alimentar a máquina de propaganda da junta militar do país, os rumores sobre questões relacionadas com bónus, entre outras. Além destas razões, surgiu uma mais sinistra como tendo sido a razão por detrás da não participação de Cruyff no Mundial de 1978. 

Cruyff, Estratégia de jogo e o Mundial de 1974

No Mundial de 1974 que decorreu na Alemanha Ocidental, Cruyff foi o responsável por pôr em prática o famoso Totaalvoetbal, que significa Futebol Total em tradução literal. Este foi um dos temas já abordados num dos artigos anteriores e diz respeito a uma estratégia de jogo adotada pela Holanda e que fez parte da era de ouro da seleção holandesa.

O treinador Rinus Michels foi um pioneiro a usar uma estratégia tão diferente das que foram vistas até então. Aliado à sua estratégia, Michels contava com jogadores brilhantes como Cruyff, Rudd Krol, Rob Rensenbrink, Johan Neeskens, Johnny Rep e Piet Keizer. Esta nova técnica permitiu que os jogadores não estivessem apenas nas suas posições e tinham liberdade de se moverem no campo de forma a influenciar o jogo.

No Mundial que decorreu na Alemanha Ocidental, a Holanda era a seleção que mais se destacava e acabou mesmo por chegar à final. A Holanda tinha ganho cinco dos seis jogos do Mundial com vitórias sobre a Argentina (4-0), Alemanha Oriental (2-0) e Brasil (2-0). Com estas vitórias, a seleção holandesa cimentou a sua posição como a mais provável vencedora da competição. 

Com a sua prestação incrível neste mundial, Cruyff ganhou a bola de ouro pela terceira vez em quatro anos. Apesar desta vitória individual, acabou por não conseguir levar para casa o maior prémio de todos, que era o de vencer o Mundial.

No jogo final, a Holanda abriu a partida com um golo de Johan Neeskens logo aos dois minutos. Com o decorrer do jogo, a Alemanha Ocidental conseguiu marcar e passar à vantagem antes do final da 1ª parte, deixando a Holanda a perder um jogo pela primeira vez na competição. Isso abalou a confiança da Holanda que ao começar a 2ª parte do jogo em desvantagem acabou por não conseguir recuperar.

A seleção era constituída por um grupo de jogadores jovens e Cruyff tinha apenas 27 anos, por isso esta seria apenas uma derrota no meio de futuras vitórias. Apesar de a seleção holandesa não ter conseguido alcançar a vitória no Mundial de 1974, conseguiu manter o otimismo e deu a desforra quatro anos mais tarde quando venceu o Mundial de 1978. No entanto, as coisas estavam prestes a tomar um rumo inesperado.

Qualificação para o Mundial de 1978 e a saída de Cruyff

No Mundial de 1978, a Holanda ficou na fase de grupos com a Bélgica, a Irlanda do Norte e a Islândia. Com a saída do treinador da seleção holandesa, Rinus Michels, este foi substituído pelo austríaco Ernst Happel antes do Mundial. No entanto, com Cruyff na equipa os resultados que a Holanda tinha vindo a apresentar eram consistentes e estava visivelmente preparada para o Mundial.

No entanto, assim que a Holanda ficou qualificada para o Mundial de 1978 Cruyff anunciou a sua intenção de deixar o futebol. Com apenas 30 anos, esta decisão chocou toda a gente. A sua decisão foi considerada um duro golpe na seleção holandesa e reduzia as possibilidades de se sagrar campeã do mundial na Argentina.

Com esta decisão inesperada, as pessoas tentaram encontrar alguma explicação que pudesse justificar esta decisão e a partir daí formaram-se vários rumores e especulações sobre a saída de Cruyff do futebol.

Declarações políticas e relações tensas

Um dos rumores mais falados estava relacionado com o novo panorama político na Argentina, isto porque dois anos antes do Mundial de futebol de 1978 uma junta militar liderada por Jorge Rafael Videla tomou controlo do país através de um violento golpe de estado.

Após o golpe de estado foram surgindo múltiplas histórias de violações de direitos humanos e milhares de dissidentes desapareceram em circunstâncias duvidosas. A comunidade internacional ficou indignada com a decisão de atribuir à Argentina a organização do Mundial de 1978, mas apesar de toda a indignação, nenhum dos países apurados boicotou a competição.

Desde a atribuição à Argentina da organização do Mundial até ao momento que ele começou, a Holanda tinha sido um dos países mais críticos da Argentina e da FIFA. No entanto, a verdade é que essas críticas da seleção holandesa não tiveram nenhum efeito prático e isso poderá ter frustrado Cruyff. Surgiram rumores que afirmavam que o motivo da saída de Cruyff estava relacionado com a recusa da seleção holandesa manter-se fiel às suas convicções e potencialmente boicotar este Mundial, levando assim a um conflito com Cruyff. 

Seguindo esta linha de pensamento, todas as peças parecem encaixar até porque Cruyff tinha um historial de ativismo e de ser ativo em questões políticas. Assim, deste ponto de vista, é plausível que a saída de Cruyff estivesse relacionada com a sua recusa de jogar num Mundial organizado por um regime repressivo. Já quando Cruyff saiu do Ajax e foi para o Barcelona em 1973, afirmou estar satisfeito por não se juntar ao Real Madrid devido à ligação do clube ao ditador Franco. O historial de Cruyff tornava então provável que esta saída tenha sido uma forma de boicote do Mundial de 1978 na Argentina. 

A segunda possível razão mencionada na altura estava relacionada com o patrocínio. Cruyff tinha um lucrativo contrato de patrocínio com a Puma, enquanto a seleção holandesa era patrocinada pela Adidas, a sua rival. O rumor dizia que o atrito entre a Puma e Adidas levou Cruyff a reformar-se antes do Mundial de 1978, mas além de ser uma ideia superficial, também parece um pouco estranha.

Muitos anos depois surgiu um livro que dizia revelar a verdade por detrás desta história. Carles Rexach, antigo colega de equipa de Cruyff no Barcelona, lançou um livro em 2008 que aborda este assunto. No livro, Rexach afirma que a sua saída não foi causada pela ditadura na Argentina ou pelos patrocínios, mas sim pela pressão familiar da esposa e família. Rexach afirma no seu livro que a esposa de Cruyff, Danny, disse a Cruyff que não aguentava estar longe dele durante um mês e o Cruyff escolheu ficar com a sua noiva em vez de participar no Mundial.

Contudo, e após tanta especulação, Cruyff revelou na primeira pessoa o mistério que até então tinha gerado discussão durante três décadas.

Cruyff e a tentativa de rapto que terminou a sua carreira internacional

Numa entrevista dada à Catalunya Ràdio em 2008, Johan Cruyff revelou a verdade sobre a sua saída do futebol. 

Cruyff revelou que em 1977 ele e a família foram vítimas de uma tentativa de rapto na sua casa em Barcelona. O jogador detalhou esse momento, afirmando que: “Eu tinha uma espingarda na cabeça, estava amarrado, as crianças estavam no apartamento em Barcelona”.

O ex-jogador não deu mais detalhes sobre esta situação, no entanto, disse que a sua família foi colocada sob proteção policial durante quatro meses e os seus filhos foram sempre acompanhados para a escola pela política.

Preocupado com o bem-estar da sua família, Cruyff decidiu logo que viajar para o Mundial na Argentina e estar ausente durante várias semanas estava fora de questão. O ex-jogador afirmou que “para jogar num Mundial é preciso estar a 200%”, e que “há momentos em que há coisas mais importantes na vida”, acrescentando que “chega uma altura em que dizes basta. Chega uma altura em que há outras coisas que são as mais importantes. As crianças iam à escola acompanhadas pela polícia”.

Cruyff explicou então que esta foi a razão que levou à sua saída do futebol, acabando por acrescentar que “A política dormiu na nossa casa durante três ou quatro meses. Eu ia a jogos com um guarda-costas. Estas coisas mudam o teu ponto de vista em relação a muitas coisas. Queríamos parar com isto e ser um pouco mais sensatos. Era o momento de deixar o futebol e eu não podia jogar no Mundial depois disto ter acontecido”.

Em 1978, Cruyff retirou-se completamente do futebol. Mais tarde, aos 31 anos, o holandês e a sua família começaram uma nova vida nos Estados Unidos, quando Cruyff começou a jogar no clube Los Angeles Aztecs que fazia parte da Liga de Futebol Norte-Americana. Em 1981, decide regressar à Europa e começa a jogar no Levante Unión Deportiva.

Regressamos à prestação da seleção holandesa no Mundial de 1978 para perceber como se saiu sem Cruyff a liderar a equipa. A Holanda, conseguiu chegar à final na Argentina sob o comando de Ernst Happel, uma proeza considerada quase impossível sem Cruyff na equipa. 

No entanto, e apesar de ter chegado à final, a Holanda perdeu por 3-1 contra o país anfitrião já no tempo extra. Há quem diga que a Holanda teria vencido se Cruyff tivesse participado no Mundial e que, o jogador conhecido pelo seu famoso número 14, foi a ausência mais sentida em toda a competição. 

Esta nova derrota na final de um Mundial ditou o fim da famosa estratégia usada pela seleção holandesa, e o “Totaalvoetbal” viu assim terminada a sua era. 

Desde esse momento, a seleção holandesa só chegou novamente a uma final do Mundial de futebol em 2010 e embora tenha conseguido ganhar o Campeonato Europeu de Futebol de 1988 com Marco van Basten, Ruud Gullit e Frank Rijkaard, continuam a não conseguir chegar ao título de campeões mundiais.